Os traumas na cura analítica – Bons e maus encontros com o real
por Christiane Alberti, Marie-Hélène Brousse
Há uma teoria espontânea do trauma. O que não podia acontecer, aconteceu. Impensável! Inimaginável! Insuportável! Demais.
“Perco o controle” – Diante
do impossível realizado o sujeito está perdido, não é mais o que ele
era, nem para si nem para os outros. Nenhuma resposta vale. O sintoma
explode.
A medicina, apoiada na
ciência moderna, busca então uma solução – a pílula do dia seguinte, a
preparação antecipada, a verbalização imediata. É a resposta pelo
apagamento da memória – que tudo possa voltar a ser o que era antes e
que os homens voltem a se ocupar dos seus afazeres tal como o imperativo
do laço social exige. Não aconteceu porque não deveria ter acontecido. A
questão surge: como viver depois do trauma sem o trauma? Não se tira
nenhuma lição do trauma.
Como o trauma faz parte da
existência e não pode ser eliminado, a psicanálise opta por uma
estratégia diferente, mais pragmática. Nenhuma alteração da memória,
nenhum apagamento, nenhuma contra programação, nenhuma catarse, poderão
eliminar o real. Mesmo supondo que tais soluções sejam possíveis, os
danos colaterais seriam grandes demais e inaceitáveis do ponto do visto
ético.
Então, o que propõe a
psicanalise? Ela considera que o trauma aconteceu, que ele modificou o
sujeito e que ele se apresenta como avesso de um ato. E por isso que ela
escolhe tirar do trauma um ensinamento. Desde a sua origem, a
psicanálise, os analistas, Freud antes de todos, tiveram que reconhecer
uma evidencia clínica: a realidade psíquica não coincide de modo algum
com a realidade objetiva, seja ela fatual ou do discurso.
Mais ainda, a noção de
trauma exige uma nova definição do fato e do evento que seja congruente
com o sujeito do inconsciente. Lembremo-nos do celebre exemplo citado na
Interpretação dos Sonhos revisto por Lacan.
Um pai perdeu seu filho,
perda cruel, trauma no sentido comum. Exausto, ele pediu a uma pessoa
familiar que se ocupasse de velar alguns instantes o corpo do filho
amado. Mas, por sua vez, esse homem adormeceu ao lado da criança que,
ela, dormia o seu sono derradeiro. De repente, um barulho: o fogo
começou a queimar o corpo do filho amado. Esta é a realidade. Como é que
o inconsciente responde? Por um pesadelo. A criança se aproxima e
murmura “Pai, não vês que estou queimando?”. Onde está o trauma? A
impossível voz do morto, eis o que verdadeiramente desperta o pai.
Uma imagem indelével, a
erupção de um terror, a exacerbação de uma emoção, uma palavra
eternamente inarticulável, são múltiplas as referencias às feridas que
não se apagam, “perdas imaginarias no ponto mais cruel do objeto”. A
expressão é de Lacan que celebra, na perda, a relação do trauma aos
objetos, deixando o sujeito desnorteado, em um mundo que perdeu o
sentido.
Aqui inicia-se o
tratamento, no intervalo da fratura do sujeito, da perfuração da sua
realidade. Sobre estes pontos de fixação, a maquina de produzir sentido
se precipita e se esgota, confrontada ao que cegamente, o inconsciente
real, não cessa de repetir.
Todo mundo delira, isto
é, dá seu próprio sentido, porque todo mundo é traumatizado. Mas o
delírio não liberta do trauma. Quando isso se repete, em quais condições um eu pode advir?
À universalização do
delírio dos Uns-sozinhos, responde a generalização do trauma. O mal
estar correlacionado ao sintoma cedeu seu lugar ao trauma relacionado à
rejeição da marca, na medida em que o simbólico perde seu poder diante
do real. A utopia dominante não é mais o recurso ao pai, mas ao risco
zero com a docilidade geral que ele implica. Porém, não se leva ai em
conta essa “coisa obscura” que está em nós. Cabe à psicanálise
atribuir-lhe seu justo lugar, sempre singular, sempre contingente.
a realidade psíquica não coincide de modo algum com a realidade objetiva, seja ela fatual ou do discurso.
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