quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Os imbróglios do narcisismo


* texto de Éric Laurent, publicado em LACAN COTIDIANO 75
Tradução: Zelma Abdala Galesi
Revisão: Maria do Carmo Dias Batista

 

A miragem do narcisismo e a morte, desde a mitologia grega e a sua retomada freudiana, têm as mais estreitas relações. O recurso mais escondido do narcisismo é o de escolher seu caminho para a morte. Em seu escrito Uma criança é espancada, Freud pôde evocar a transformação do sadismo em “masoquismo passivo, novamente em um sentido narcisista”.
Em seu texto final sobre Moisés e o monoteísmo, ele generaliza os danos causados pelos traumatismos precoces e as feridas narcísicas que implicam. Há, portanto, algo de podre no reino do narcisismo, de onde a felicidade está excluída.
Lacan fez dessa tensão sem rémedio, da impossibilidade de reintegrar sua imagem, da impossibilidade que ela seja sem ferida, o recurso central do imaginário. É a chave da relação de cada um com sua imagem, e além dela, com toda representação possível de si como si mesmo.
O desaparecimento recente de Steve Jobs e o marketing implacável que trouxe ao mercado a biografia autorizada quinze dias após a sua morte, nos leva a refletir a céu aberto sobre os imbróglios do narcisismo. As exigências de Steve Jobs e sua ideia do gosto (taste) pelos pequenos detalhes, fizeram a originalidade dos produtos da Apple. Elas também tornaram mais de um colaborador emocionalmente louco de raiva. Podemos ver sua famosa declaração: “Sejam loucos, sejam insaciáveis”, é bem dele, que fazia regimes vegetarianos muito particulares, assim como a ideia de que o corpo deve seguir o espírito. A revista Fortune escreveu sobre ele “que é considerado como o maior egoísta do Silicon Valley”.
Em outubro de 2003, quando descobre que está sofrendo de uma forma de tumor pancreático relativamente rara, “um tumor endócrino nas Ilhotas de Langerhans”, ele recusa por nove meses a operação, com a qual lhe garantiram sucesso sobre o câncer. Para finalmente ceder às recomendações da elite médico-digital californiana. Torna-se, então, o melhor especialista sobre ele mesmo e sua doença, mantendo um rigoroso controle sobre cada decisão. Ele faz sequenciar todos os genes de seu tumor, assim como a totalidade de seu DNA, pelas equipes universitárias de Stanford, John Hopkins, Harvard e do MIT, em colaboração. Isto lhe custará 100.000 dólares e ele se tornará uma das vinte pessoas no mundo a ter seu DNA completamente sequenciado. Disso se deduz um tratamento personalizado que abre também a via para tratamentos inovadores. Ele confidenciou a seu biógrafo: “Ou eu serei o primeiro a sobreviver ao tal câncer ou um dos últimos a morrer dele”.
Esse espírito furiosamente original, solitário, singular, era pouco dotado para a paternidade. Ele tinha grande desejo de "pensar diferente", mas teve de repetir os traumas de infância com seu séquito de feridas narcísicas, como teria dito Freud. Ele que tinha sido abandonado por seus pais, que o haviam concebido fora do casamento aos 23 anos, concebeu também fora dos laços do casamento, aos 23 anos, uma criança e a abandonou por longos anos. Quando ele descobre que sua futura esposa, Laurence Powell, negociante em Goldman Sachs, estava grávida, ele pensa em voz alta em abandoná-la por outra. Quando sua filha quer ir para Harvard, ele se recusa a pagar a taxa de inscrição, e será um amigo da família que fará o adiantamento. Ela não o convidará a cerimônia de formatura. Maureen Dowd cita esse amigo, Andy Hertzfeld, que atribuiu a causa de sua "crueldade deliberada" para com os seus próximos, ao traumatismo do abandono.
Jacques Derrida, em uma entrevista de 1987, comentando sobre seu projeto autobiofotográfico, falou um pouco mais sobre a sua vontade de restaurar um "direito ao narcisismo." Não há o narcisismo e o não-narcisismo, há narcisismos mais ou menos compreensíveis, generosos, abertos, amplos, e aquilo que se chama o não-narcisismo é, em geral, apenas a economia de um narcisismo muito mais acolhedor, hospitaleiro e aberto à experiência do outro como outro. Acredito que sem um movimento de reapropriação narcísica, a relação com o outro seria absolutamente destruída, seria destruída com antecedência. (...) É preciso esboçar um movimento de reapropriação da imagem de si-mesmo para que o amor seja possível, por exemplo. O amor é narcisista. Portanto, há pequenos narcisismos, há grandes narcisismos, e no final, há a morte, que é o limite.
Da experiência – se houver uma – da própria morte, o narcisismo não abdica absolutamente”.
Jacques Derrida e Steve Jobs sonham, sem dúvida, em fazer de sua morte uma experiência. Seria um fantasma obsessivo? Deixemos a eles a última palavra lá em cima [ou sobre... (o assunto)]. Silêncio.


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A entrevista de Derrida citada por Éric Laurent encontra-se no site Derrida em castelhano.
"Não há o narcisismo" (autobiofotografias) - Jacques Derrida. Lançado em um programa da France-Culture por Didier Cahen, “O bom prazer de Jacques Derrida”, em 22 de março de 1986, e publicado sob o título “Entrevista com Jacques Derrida”, em Digraphe, n. 42, dezembro, 1987.