* Por Daniel Roy, Lacan Cotidiano 275
O que é que se transmite, do pai e/ou da mãe, à criança? Esta
questão encontra-se no centro dos posicionamentos atuais sobre a
extensão da família « conjugal », e que já engloba diversos modos de
«fazer família» - casamento, PACS, família dita « recomposta », casais
homossexuais com filhos – e mesmo, possivelmente os casais homossexuais
casados. A psicanálise, tão frequentemente desacreditada, é convocada
neste ponto para carimbar a necessidade natural ou simbólica, e segundo,
um modo de transmissão normatizado , para o bem-estar da criança : um
papai + uma mamãe.
1- A transmissão: o que é irredutível?
A extensão atual de uma conjugalidade do tipo «familiar» sublinha a
função «residual» da família no corpo social, indispensável a
transmissão de uma constituição subjetiva. O
que é irredutível não é a transmissão da vida – pais ditos biológicos, o
direito às origens, etc. – mas a relação com um desejo que não é
anônimo.Isto não se opõe em
nada com o fato de que os sujeitos tenham conhecimento das condições de
sua vinda ao mundo, isto indica, apenas, que o vivo da questão da
transmissão atravessa estas diversas representações, necessariamente
presentes.
2- As funções do pai e da mãe : à qual necessidade respondem?
Torna-se extenuante definir uma repartição de « papéis » maternos e
paternos : diversos corpos falantes fazem-se hoje os suportes dessas
duas funções, fora de toda repartição «natural» (sexo) ou «cultural»
(gênero). Portanto, o que são estas funções? A função paterna, indica apenas uma coisa: a necessidade da castração! É muito, já que trata-se de encarnar uma autoridade que não tem a não ser a garantia da palavra. A função materna, indica a necessidade de transmitir a marca de um interesse particularizado, ou seja, a presença de um desejo. Então,
aqui estamos de volta ao ponto de partida (um papai + uma mamãe)? Não
de todo: cada ser falante pode se fazer o suporte destas duas funções,
isso esta aberto. A única certeza, é que o fará às suas próprias custas.
Portanto, não é de forma alguma certo que esses nomeados «os pais »
façam o trabalho: neste caso, a criança vai lidar com isso de forma
diferente.
3- O que conta, é o que vem deles, isso não é porque sejam dois,
de sexos diferentes. De qualquer modo, para cada um deles, a diferença
dos sexos existe e os dividem, ou mesmo os afligem. O
princípio permanece de não «combinar» demasiado os pais, quer eles
sejam homo ou hétero: nos melhores dos casos, o que os une, ou os
desune, é enigmático para a criança.
Mas o que uma criança pode, portanto, receber de um homem ou de uma
mulher, enquanto que eles se reconhecem «pai» ou «mãe»? Para um pai,
Lacan sublinhará que inevitavelmente, a criança cairá sobre o seu
«pecado», sobre a sua falta: ele vai fazer bem, nomear com ardor, pois,
nunca esgotará o gozo da língua...encarnado pela mãe, aquela que ensina a
sua criança a representar !
Então, um pai sempre carente – irá transmitir a castração -, uma mãe que
institui a mascarada – transmitindo o particular do seu desejo:
extrai-se aqui da « conivência social » que continua a fixar a criança à
mãe, fazendo-a «a sede eleita das interdições» (Ah, o incesto e o
incestuoso que sempre ameaçam).
4- Há um mal-entendido !
O mal-entendido « que sua linhagem lhe transmitiu dando-lhe a vida »,
consiste no fato de que não há nada de natural, nem de sobrenatural,
para fazer laço entre um pai, uma mãe e uma criança. Não tem nada de
outro para ligar os membros da família – qualquer que seja a sua
composição -, que este enigma evidenciado por Freud, que nenhum ser
falante saberia « de onde vêm as crianças ». Assim,
os seres falantes não estão em dívida, no que diz respeito, aos seus
pais, porque eles lhe « deram a vida », mas porque eles lhes
transmitiram esta falta, este defeito inerente a todo discurso, por não
poder dar conta da aparição de corpo falante no real, que não seja, pelo
mal-entendido da palavra.
Assim, de nenhuma forma, estas funções paternas e maternas, liberadas
pela psicanálise, não podem fundar uma norma « familiar », e as diversas
famílias, qualquer que seja suas constituições, podem ser, para o
pequeno do homem que é ai acolhido, o lugar desta dupla transmissão :
1) que o habitat da linguagem com efeito é o lugar de uma separação - a castração -,
2) que há de inventar com a alíngua um saber-fazer com o gozo – com a mascarada -.
O fracasso é, portanto, aqui a única norma: os avatares da família
moderna o ilustram com estrondo(s), conjugando separações e mascaradas
nas configurações inéditas !
Parágrafo 1 e 2: Lacan J., « Nota sobre a criança », Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 369
Parágrafo 3: Lacan J., Seminário, Livro XVII, O avesso da psicanálise, Rio de janeiro, Jorge Zahar, p. 89 e p. 129
Parágrafo 4 : Lacan J., « Le malentendu », Ornicar 22-23, printemps 1981, p. 12