É a história de um homem, Lucas (Mads Mikkelsen), que acabara
de se divorciar e disputa a guarda de seu filho com a ex. Tem como profissão um
trabalho numa creche, um tipo de cuidador/instrutor. E que se diga de passagem,
um trabalho que utiliza pouco das melhores características ditas masculinas. Um
tom de desprezo é revelado por uma voz da sociedade em relação a isso, mas
Lucas parece não se incomodar com a desaprovação.
Embora
esteja passando por uma fase de separação amorosa, o personagem parece não
estar especialmente devastado com isso. Tem outros laços sociais na vida, como
os amigos (sendo um em especial mais chegado) e justamente o trabalho que faz
com as crianças. A grande trama começa quando Klara (Annika Wedderkopp), uma
menina de seus 5 anos, filha de seu melhor amigo, declara seu amor por Lucas.
Delicadamente, ele desencoraja Klara a investir nesse amor, encarando como uma
paixonite infantil, sem fazer grandes alardes por isso. A menininha, frustrada
com a rejeição, conta uma história fantasiosa para a coordenadora da creche,
que por sua vez ouve o que quer. Uma ou duas palavras colocadas pela menina, viram
um texto completo na boca da Sra. Coordenadora. E aí o mal-entendido (ou
bem-entendido se olharmos pela perspectiva da fantasia que só diz da
coordenadora) começa.
“Não gosto
dele”, “pipi que aponta para cima como uma vara” é colhido pelos ouvidos da coordenadora
como: Lucas teve algum tipo de contato sexual com Klara. É completamente
desconsiderado o fato de crianças terem instintos sexuais. Para o infortúnio de
Lucas, um segundo homem (psicólogo?) vem entrevistar a menina, que não faz mais
que balançar a cabeça enquanto o homem narra tudo o que sua imaginação lhe
permite. Daí em diante a dimensão estratosférica que isso ganha só vai
aumentando exponencialmente, a ponto dele ser completamente excluído de seus
meios sociais. Nem seu melhor amigo acredita nele. Seu filho e o padrinho desse
são as únicas pessoas que se mantiveram ao seu lado.
O diretor do
filme, Thomas Vinterberg, conduz magistralmente o que, em minha opinião, é o
ponto crucial do filme: a reação enérgica da sociedade diante da possibilidade,
por mais que remota, de uma relação entre um adulto e uma criança. A tensão
aumentada a cada cena faz com que o espectador imagine a todo momento possíveis
saídas para aquilo. Primeiro com a perda de seu emprego, depois com seus amigos
íntimos virando a cara sem nem darem a oportunidade dele se expressar, com a
morte-matada de sua cachorra, com os impedimentos que sofre até mesmo para
fazer compras no mercado. Sua vida desmorona.
Por mais que
o juiz do direito o absolva, pois a história tem seus tons escancaradamente
absurdos, a sociedade está cega. Por que tamanha reação? Freud em seu texto Totem e tabu (1913), realiza um estudo
sobre povos ancestrais, supondo que, através de seus costumes, poderíamos ter
uma ideia da vida mental desses que chamamos de selvagens e nela poderíamos ver
um retrato de um estágio primitivo do nosso próprio desenvolvimento.
O ponto
desse texto que faz uma interlocução com o filme é quando se explana sobre as
regras de evitação entre pessoas. São citadas as evitações que ocorrem: entre
um homem e sua cunhada nos barongos de Delagoa Bay, na África do sul, em que se
a encontra, cuidadosamente a evita, não come no mesmo prato que ela e
dirige-lhe a palavra com constrangimento e tremor na voz ; entre os a-kambas,
da África Oriental Inglesa, uma moça deve evitar o pai no período que vai da
puberdade ao casamento, desviando seus caminhos nos casos de encontro ocasional;
e a evitação mais difundida e rigorosa é a que impede as relações de um homem
com sua sogra e pode ser verificada na Austrália, Melanésia, Polinésia e nas
raças negras da África, onde traços de totemismo pode ser encontrado.
A tese
freudiana para explicar tais regras de evitação é devida ao fator incestuoso
que reside nessas relações. Na situação de um homem com a sogra, descobre-se
que esse geralmente escolheu a mãe como objeto de amor, e talvez a irmã também,
antes de chegar à escolha final. Como há a proibição contra o incesto, é a
sogra quem assume o lugar de sua mãe, pois apesar dele relutar contra isso, ele
tem o impulso de recair sobre a escolha original. Assim, a explicação dessas
evitações obrigatórias adotadas pelos povos primitivos é a que as encara como
uma proteção a mais contra o possível incesto, sendo ela válida tanto para as
evitações consanguíneas como tribais. A diferença é que nas relações de
parentesco a possibilidade de incesto é imediata, e nos outros casos, “a
possibilidade de incesto parece ser uma tentação na fantasia, mobilizada pela
ação de laços vinculantes inconscientes” (FREUD, 1913).
Tomemos o
caso do filme: a relação entre um homem e uma menina. Remontando a trajetória
da vida psíquica de um sujeito de acordo com o viés psicanalítico, há a fase na
qual a criança toma como objeto de amor seu progenitor. Mas por conta da
barreira contra o incesto inventada pelos homens, seu amor é desviado da figura
em que se centralizava para um objeto externo, isto é, o lugar ocupado por seu
progenitor é assumido por outro objeto, sendo essa passagem “esquecida”
(recalcada) pela mente consciente. É precisamente pelo fato do incidente
retomar impulsos incestuosos em cada habitante, que advém tamanha repulsa pelo
caso. Uma violenta reação guarda, em igual proporção, sua contrapartida. O que
de mais intenso um homem da civilização quer proteger de si senão seus impulsos
incestuosos?
Claro, não
se trata aqui em fazer apologia à pedofilia. O que grita em notas agudas no
filme é a forma como esses habitantes lidam com seus próprios instintos
sexuais. Desde a negação da sexualidade infantil, a invenção da relação entre
Lucas e Klara, o tampão nos ouvidos dos cidadãos para qualquer defesa do homem,
até a cena final do filme (um tiro a centímetros do rosto de Lucas, aviso de
que a cidade não esqueceu), são indícios de como esses habitantes lidam com a
própria sexualidade, colocando no mundo externo evitações de algo que se quer negligenciar
no íntimo.
FREUD, S. Totem e tabu [1912-13]. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII. Rio de
Janeiro: Imago Editora.