segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Psicanalista vai ao cinema

Sobre o filme La Teta Asustada (Direção: Cláudia Llosa, 2009)

A história se passa no Peru e retrata uma realidade muito difícil da década de 1980. O filme começa com a mãe da protagonista cantando em seu leito de morte. Nesse canto, ela localiza a trama subjetiva em que ela e a filha estão inseridas. É a história de uma mulher que, a um só momento, presencia a violenta morte de seu marido e é estuprada enquanto carrega sua filha no ventre. Com a ajuda do imaginário da aldeia em que vive, essa mulher faz uma leitura muito particular desse fato: devido ao ocorrido, ela acredita transmitir para a filha uma “doença” ao amamentá-la. Tal doença é conhecida pelo nome de Teta Assustada. Reza a lenda local, que filhos que nascem de mães violentadas durante a gestação recebem seu medo através do leite materno. Fausta Isidora Janampa Chauca nasce nesse contexto.

Fausta também faz sua escolha. Escolhe viver uma história que lhe foi oferecida e que é anterior à sua existência. E, como toda história previamente dada a um sujeito, tem buracos onde há a possibilidade do sujeito aparecer. Não se trata de negá-la, já que é justamente algo que o constitui, mas de criar por cima dela para que ele possa aparecer enquanto ser ativo de sua própria vida. Fausta, entretanto, ao invés de aparecer pelos buracos de sua história, os preenche com uma “batata”, tamponando assim a possibilidade de se desprender desse lugar que lhe foi dado.

A metáfora da batata no filme é bastante elucidativa desse mecanismo: a protagonista vive com uma batata em sua vagina como uma proteção contra estupro! Ela coloca no real de seu corpo algo que tampone seus desejos e ao mesmo tempo o vazio. Mas essa escolha tem suas conseqüências, inclusive em seu corpo, com desmaios e sangramentos nasais. Como diz o tio ao médico de Fausta:

“ – Ela sangra desde menina, quando fica assustada. A mãe dela, que Deus a tenha, acaba de morrer. Por isso ela desmaiou. Ela enfrentou dificuldades na vila. Fausta nasceu durante o terrorismo. E a mãe lhe transmitiu medo através do leite do peito. É Teta assustada, como chamamos quem nasce assim, sem alma, porque ela se esconde na terra, de medo”.

Assim como uma batata, vive Fausta “escondida na terra”. Fausta presencia o final da conversa de seu tio com o médico, que dizia não existir tal doença, teta assustada. Mas, como numa conversa de surdos, termina com um mal entendido em que um não pode escutar o outro. E o tio sai da sala do médico indignado com o disparate da história de uma batata na vagina! E Fausta, que poderia nesse momento se fazer alguma questão sobre o que o médico diz, escolhe a batata.

Com a morte da mãe, sem dinheiro para bancar um enterro apropriado, Fausta vai à busca de um trabalho, o que para ela não era uma tarefa fácil, já que nunca saira do seio familiar. O contato com outras pessoas a deixa muito ansiosa. Em seu primeiro encontro com a patroa, ela vai se aproximando de mansinho, como um animal assustado, desconfiado e ao começarem uma conversa seu nariz sangra. Sai correndo e vai se limpar e canta:

“Vamos cantar, vamos cantar. Devemos cantar coisas bonitas para esconder nosso medo e fingir que ele não existe”.

“Medo” não é qualquer palavra para Fausta. Antes de seu nascimento, já estava dado seu contexto familiar e é a partir dele que lhe foi oferecido um lugar, o lugar de alguém que tem medo. Ela é filha de uma mulher que teve seu marido morto e foi violentada enquanto lhe gestava e por isso acredita-se que um intenso medo foi transmitido pelo leite materno. Essa é a história que é contada por sua mãe e que, por amor a esta, fixa-se à trama como um mero objeto da história da mãe. “Medo” a um só tempo a estrutura e a sufoca, pois ela o vive como se fosse a única forma possível de se viver.

Na convivência com outras pessoas, Fausta vai cedendo em seu medo e se abrindo para novas oportunidades. Começa a se aproximar de Noé, o jardineiro da casa onde trabalha, que aos poucos vai ganhando sua confiança, e de sua patroa, que lhe presenteia com uma pérola toda vez que canta para ela. Numa conversa , Noé questiona seu medo. Para ela, se trata de algo que não se escolhe ao que ele contra-argumenta, dizendo que a única coisa que não se escolhe é a morte. Este é um momento importante, pois a fala de Noé funciona como uma interpretação fazendo vacilar essa forma com que Fausta se apresenta ao mundo, de mulher medrosa. Outro ponto que vai nessa direção é a relação com a patroa, em que ela serve de outro à identificação feminina para Fausta. Os resultados disso é um crescente interesse de Fausta pelo mundo a sua volta e por pérolas.

O ápice do filme está no final, quando uma série de eventos vai de encontro à forma de vida que a protagonista leva. Primeiro, o episódio em que a patroa expulsa Fausta do carro, sem mais. O carro parte e ela vai atrás, reclamando suas pérolas. Pela primeira vez, se vê na situação de andar sozinha na rua, pois até então, só andava acompanhada, por conta do medo. Em seguida, ela falha na tarefa de enterrar a mãe e desculpa-se com o tio que, em princípio não diz nada mas, momentos depois, entra no quarto de Fausta e tenta sufocá-la. Entretanto, logo a deixa respirar e enfatiza que está viva, que respire! Desesperada, Fausta corre à casa de sua patroa e pega as pérolas prometidas. Regressando, desmaia na rua e o jardineiro a encontra. Ela desperta e pede que tirem a batata de seu corpo, como se já não pudesse suportar nem mais um minuto. Finalmente sua mãe é enterrada.

Fausta sai da terra! As últimas cenas mostram a virada que ela dá em sua vida colocando-se no mundo de uma forma mais ativa, como um ser desejante. O filme conta a história de uma jovem do ponto inicial em que está submetida ao desejo do Outro. Outro aqui entendido como a mãe, mas também a cultura, a fala local cujo texto a submete a esse local de “doente da teta assustada”. Com a morte de sua mãe, a vida coloca Fausta em situações em que ela não mais pode se esconder e então ela se reinventa. Assim, Fausta retira a batata de si e enterra a mãe, pois agora ela pode suportar ser um sujeito que tem suas faltas e portanto desejante. E isso a leva a ocupar uma posição subjetiva feminina, em que a batata não mais tem sentido, mas sim pérolas. Do medo ela fez pérolas ao passo que devolve à terra o que é da terra: a batata e sua mãe.

BIBLIOGRAFIA

LACAN, J., “O inconsciente e a repetição” in: O Seminário livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LACAN, J., O mito individual do neurótico (1978). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

FILME

La Teta Asustada (2009). Peru. Direção: Claudia Llosa. Ganhador do Festival de Cinema de Havana e do Urso de Ouro de 2009.