Parto da indicação de meu caríssimo e saudoso
amigo, Marcio Peter de Sousa Leite, sobre o “Bloco
Mágico” em Freud: “um brinquedo para crianças
onde um celofane é superposto a uma superfície
onde se escreve e quando se levanta o celofane,
automaticamente se apaga o que está escrito. No
entanto, sempre fica uma marca. Freud diz que o
inconsciente é assim: o recalque apaga as
inscrições anteriores, mas tem sempre uma marca
material que fica e que condiciona traços do que é
escrito posteriormente”.
O caso Emma (1) pode funcionar como
exemplo, pois se trata de uma garota ainda
fora da fase sexual que, ao visitar um
merceeiro, sofre bolinações sem se dar conta
do acontecido por falta de maturidade
simbólica. Sempre fica um resto. Ao alcançar
sua puberdade, lembra-se do ocorrido, que aí
sim funciona com força suficiente para causar
trauma, produz marca quando ela percebe o que realmente
aconteceu.
Em 1896, na Carta 52, Freud pensa o “mecanismo psíquico” pela via
da formação da memória. O interessante é que ele diz que “a
memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em
vários tempos; ela é registrada em diferentes espécies de indicações”
(2). Cito Freud: “Gostaria de acentuar o fato de que os sucessivos
registros representam a realização psíquica de épocas sucessivas da
vida. Na fronteira entre estas épocas, deve ocorrer uma tradução do
material psíquico”. (3)
O que ele ensina é que, se a tradução não se faz, ocorrem as
psiconeuroses, isto é, numa nova região ainda vigoram restos da
anterior que obedecem às leis que comandavam aquele período
vivido. Então, se acontece esta falha, o motivo do que é conhecido
como repressão, Freud mostra que é sempre a produção de
desprazer, o qual, gerando um distúrbio do pensamento, não permite
o trabalho de tradução. A defesa patológica “somente ocorre contra
um traço de memória de uma fase anterior, que ainda não foi
traduzido”. (4)
Penso isso como o que faz Marca no sujeito.
Convém lembrar que o aparelho psíquico tem como função principal a
tarefa de reduzir a excitação, causa de mal-estar ao sujeito.
Retomo Freud na "Carta 52", onde ele pensa a noção de “fueros” (5),
que indica quantidade de energia psíquica concentrada numa
determinada região, incapaz de ser dissipada, e que formam as
marcas, causa de desprazer. Isso pode ser pensado como “Fixierung”
e aponta para o trabalho de análise via associação livre e sob o
desejo do analista, que é o que fornecerá simbolização a este
material, até o resto, em sua vertente literal, real, resto incapaz de
ser simbolizado.
Avanço em direção ao Último Ensino de Lacan.
É muito interessante ver Lacan, a partir deste momento, pensar sua
clínica de maneira radicalmente diferente. Aí já não existe mais o
Outro e a direção do tratamento deve se orientar ao Real. Trata-se de
visar às marcas no próprio falasser, isto é, o que restou das
experiências traumáticas de sua história e que o condicionam,
produzindo sua maneira singular de funcionar, seu sinthoma.
Portanto, a que visa um analista quando interpreta?
Visa ao significante/letra/marca de gozo. O ensinamento de Lacan de
que existe um litoral entre o simbólico e o real, permite ver por que
uma Psicanálise funciona. Ao se interpretar, via ato analítico, se visa
à fonte de gozo do falasser. Desde Freud, sabemos que o importante
não é o trauma, mas o que ficou registrado. O trauma em seu efeito
marca o real.
É visando à marca que se causa desejo no analisando de saber sobre
seu sofrimento. Aí uma análise pode se iniciar.
A marca é consequência, em lalíngua, do encontro traumático do
significante com o corpo, gerando um acontecimento de corpo.
O acontecimento de corpo deixa marca e condiciona o sujeito em sua
vida e, às vezes, não é percebido. O trabalho de análise leva a uma
redução disso que, no final, se encontra sob a forma de letra de gozo.
O final de análise é lidar com isso que resta incurável em seu caso e
ir em direção à vida, sabendo fazer aí com seu sinthoma.
Portanto, o final de análise é alcançado a partir da construção de uma
parceria entre o parletre e seu “sinthoma”, gerando como efeito a
capacidade de saber fazer aí com o que resta incurável de seu caso,
seu próprio gozo, resto de seu Supereu, efeito de suas marcas.
Lanço mão da articulação de Lacan no seminário 23: “...se servir do
pai com a condição de poder prescindir dele” (6), ou seja, poder
encontrar e se servir da marca, com a condição de no final de uma
análise, tomar uma certa distância disso e saber fazer aí.
Assim, via ato analítico, via desejo do analista, acrescenta-se alegria,
entusiasmo pela vida!
FREUD, Sigmund. A ProtosPseudos [Primeira Mentira] Histérica. In: Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas (ESB), v. 1 (1886-1899). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977, p. 464. (1)
______. Carta 52. In: Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas (ESB), v. 1 (1886-1899). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977,
(2) p. 317. (3, 4, 5), p. 319.
______. Uma nota sobre o "Bloco Mágico". In: O ego e o id, Uma neurose demoníaca do século XVII e outros trabalhos. (ESB), v. 19 (1923-1925). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 283-290.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma, 1975-1976. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 131-132.(6)
LEITE, Márcio Peter de Souza. A teoria dos gozos em Lacan. Educação On-line. Publicado em 19 nov. 2001. Disponível em: . Acesso em: set. 2015.