sábado, 18 de maio de 2013

Sobre o filme dinamarquês: A caça (2012)

por Elida Biasoli





É a história de um homem, Lucas (Mads Mikkelsen), que acabara de se divorciar e disputa a guarda de seu filho com a ex. Tem como profissão um trabalho numa creche, um tipo de cuidador/instrutor. E que se diga de passagem, um trabalho que utiliza pouco das melhores características ditas masculinas. Um tom de desprezo é revelado por uma voz da sociedade em relação a isso, mas Lucas parece não se incomodar com a desaprovação.
            Embora esteja passando por uma fase de separação amorosa, o personagem parece não estar especialmente devastado com isso. Tem outros laços sociais na vida, como os amigos (sendo um em especial mais chegado) e justamente o trabalho que faz com as crianças. A grande trama começa quando Klara (Annika Wedderkopp), uma menina de seus 5 anos, filha de seu melhor amigo, declara seu amor por Lucas. Delicadamente, ele desencoraja Klara a investir nesse amor, encarando como uma paixonite infantil, sem fazer grandes alardes por isso. A menininha, frustrada com a rejeição, conta uma história fantasiosa para a coordenadora da creche, que por sua vez ouve o que quer. Uma ou duas palavras colocadas pela menina, viram um texto completo na boca da Sra. Coordenadora. E aí o mal-entendido (ou bem-entendido se olharmos pela perspectiva da fantasia que só diz da coordenadora) começa.
            “Não gosto dele”, “pipi que aponta para cima como uma vara” é colhido pelos ouvidos da coordenadora como: Lucas teve algum tipo de contato sexual com Klara. É completamente desconsiderado o fato de crianças terem instintos sexuais. Para o infortúnio de Lucas, um segundo homem (psicólogo?) vem entrevistar a menina, que não faz mais que balançar a cabeça enquanto o homem narra tudo o que sua imaginação lhe permite. Daí em diante a dimensão estratosférica que isso ganha só vai aumentando exponencialmente, a ponto dele ser completamente excluído de seus meios sociais. Nem seu melhor amigo acredita nele. Seu filho e o padrinho desse são as únicas pessoas que se mantiveram ao seu lado.
            O diretor do filme, Thomas Vinterberg, conduz magistralmente o que, em minha opinião, é o ponto crucial do filme: a reação enérgica da sociedade diante da possibilidade, por mais que remota, de uma relação entre um adulto e uma criança. A tensão aumentada a cada cena faz com que o espectador imagine a todo momento possíveis saídas para aquilo. Primeiro com a perda de seu emprego, depois com seus amigos íntimos virando a cara sem nem darem a oportunidade dele se expressar, com a morte-matada de sua cachorra, com os impedimentos que sofre até mesmo para fazer compras no mercado. Sua vida desmorona.
            Por mais que o juiz do direito o absolva, pois a história tem seus tons escancaradamente absurdos, a sociedade está cega. Por que tamanha reação? Freud em seu texto Totem e tabu (1913), realiza um estudo sobre povos ancestrais, supondo que, através de seus costumes, poderíamos ter uma ideia da vida mental desses que chamamos de selvagens e nela poderíamos ver um retrato de um estágio primitivo do nosso próprio desenvolvimento.
            O ponto desse texto que faz uma interlocução com o filme é quando se explana sobre as regras de evitação entre pessoas. São citadas as evitações que ocorrem: entre um homem e sua cunhada nos barongos de Delagoa Bay, na África do sul, em que se a encontra, cuidadosamente a evita, não come no mesmo prato que ela e dirige-lhe a palavra com constrangimento e tremor na voz ; entre os a-kambas, da África Oriental Inglesa, uma moça deve evitar o pai no período que vai da puberdade ao casamento, desviando seus caminhos nos casos de encontro ocasional; e a evitação mais difundida e rigorosa é a que impede as relações de um homem com sua sogra e pode ser verificada na Austrália, Melanésia, Polinésia e nas raças negras da África, onde traços de totemismo pode ser encontrado.
            A tese freudiana para explicar tais regras de evitação é devida ao fator incestuoso que reside nessas relações. Na situação de um homem com a sogra, descobre-se que esse geralmente escolheu a mãe como objeto de amor, e talvez a irmã também, antes de chegar à escolha final. Como há a proibição contra o incesto, é a sogra quem assume o lugar de sua mãe, pois apesar dele relutar contra isso, ele tem o impulso de recair sobre a escolha original. Assim, a explicação dessas evitações obrigatórias adotadas pelos povos primitivos é a que as encara como uma proteção a mais contra o possível incesto, sendo ela válida tanto para as evitações consanguíneas como tribais. A diferença é que nas relações de parentesco a possibilidade de incesto é imediata, e nos outros casos, “a possibilidade de incesto parece ser uma tentação na fantasia, mobilizada pela ação de laços vinculantes inconscientes” (FREUD, 1913). 
            Tomemos o caso do filme: a relação entre um homem e uma menina. Remontando a trajetória da vida psíquica de um sujeito de acordo com o viés psicanalítico, há a fase na qual a criança toma como objeto de amor seu progenitor. Mas por conta da barreira contra o incesto inventada pelos homens, seu amor é desviado da figura em que se centralizava para um objeto externo, isto é, o lugar ocupado por seu progenitor é assumido por outro objeto, sendo essa passagem “esquecida” (recalcada) pela mente consciente. É precisamente pelo fato do incidente retomar impulsos incestuosos em cada habitante, que advém tamanha repulsa pelo caso. Uma violenta reação guarda, em igual proporção, sua contrapartida. O que de mais intenso um homem da civilização quer proteger de si senão seus impulsos incestuosos?
            Claro, não se trata aqui em fazer apologia à pedofilia. O que grita em notas agudas no filme é a forma como esses habitantes lidam com seus próprios instintos sexuais. Desde a negação da sexualidade infantil, a invenção da relação entre Lucas e Klara, o tampão nos ouvidos dos cidadãos para qualquer defesa do homem, até a cena final do filme (um tiro a centímetros do rosto de Lucas, aviso de que a cidade não esqueceu), são indícios de como esses habitantes lidam com a própria sexualidade, colocando no mundo externo evitações de algo que se quer negligenciar no íntimo.

FREUD, S. Totem e tabu [1912-13]. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago Editora.
 



sexta-feira, 26 de abril de 2013

Os traumas na cura analítica – Bons e maus encontros com o real

por Christiane Alberti, Marie-Hélène Brousse

 

Há uma teoria espontânea do trauma. O que não podia acontecer, aconteceu. Impensável! Inimaginável! Insuportável! Demais.

“Perco o controle” – Diante do impossível realizado o sujeito está perdido, não é mais o que ele era, nem para si nem para os outros. Nenhuma resposta vale. O sintoma explode.

A medicina, apoiada na ciência moderna, busca então uma solução – a pílula do dia seguinte, a preparação antecipada, a verbalização imediata. É a resposta pelo apagamento da memória – que tudo possa voltar a ser o que era antes e que os homens voltem a se ocupar dos seus afazeres tal como o imperativo do laço social exige. Não aconteceu porque não deveria ter acontecido. A questão surge: como viver depois do trauma sem o trauma?  Não se tira nenhuma lição do trauma.

Como o trauma faz parte da existência e não pode ser eliminado, a psicanálise opta por uma estratégia diferente, mais pragmática. Nenhuma alteração da memória, nenhum apagamento, nenhuma contra programação, nenhuma catarse, poderão eliminar o real. Mesmo supondo que tais soluções sejam possíveis, os danos colaterais seriam grandes demais e inaceitáveis do ponto do visto ético.

Então, o que propõe a psicanalise?  Ela considera que o trauma aconteceu, que ele modificou o sujeito e que ele se apresenta como avesso de um ato. E por isso que ela escolhe tirar do trauma um ensinamento. Desde a sua origem, a psicanálise, os analistas, Freud antes de todos, tiveram que reconhecer uma evidencia clínica: a realidade psíquica não coincide de modo algum com a realidade objetiva, seja ela fatual ou do discurso.

Mais ainda, a noção de trauma exige uma nova definição do fato e do evento que seja congruente com o sujeito do inconsciente. Lembremo-nos do celebre exemplo citado na Interpretação dos Sonhos revisto por Lacan.

Um pai perdeu seu filho, perda cruel, trauma no sentido comum. Exausto, ele pediu a uma pessoa familiar que se ocupasse de velar alguns instantes o corpo do filho amado. Mas, por sua vez, esse homem adormeceu ao lado da criança que, ela, dormia o seu sono derradeiro. De repente, um barulho: o fogo começou a queimar o corpo do filho amado. Esta é a realidade. Como é que o inconsciente responde? Por um pesadelo. A criança se aproxima e murmura “Pai, não vês que estou queimando?”. Onde está o trauma? A impossível voz do morto, eis o que verdadeiramente desperta o pai.
 
Uma imagem indelével, a erupção de um terror, a exacerbação de uma emoção, uma palavra eternamente inarticulável, são múltiplas as referencias às feridas que não se apagam, “perdas imaginarias no ponto mais cruel do objeto”. A expressão é de Lacan que celebra, na perda, a relação do trauma aos objetos, deixando o sujeito desnorteado, em um mundo que perdeu o sentido.
 
Aqui inicia-se o tratamento, no intervalo da fratura do sujeito, da perfuração da sua realidade. Sobre estes pontos de fixação, a maquina de produzir sentido se precipita e se esgota, confrontada ao que cegamente, o inconsciente real, não cessa de repetir.
 
Todo mundo delira, isto é, dá seu próprio sentido, porque todo mundo é traumatizado. Mas o delírio não liberta do trauma. Quando isso se repete, em quais condições um eu pode advir?
 
À universalização do delírio dos Uns-sozinhos, responde a generalização do trauma. O mal estar correlacionado ao sintoma cedeu seu lugar ao trauma relacionado à rejeição da marca, na medida em que o simbólico perde seu poder diante do real. A utopia dominante não é mais o recurso ao pai, mas ao risco zero com a docilidade geral que ele implica. Porém, não se leva ai em conta essa “coisa obscura” que está em nós. Cabe à psicanálise atribuir-lhe seu justo lugar, sempre singular, sempre contingente.
 

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O que é que se transmite, do pai e/ou da mãe, à criança?

* Por Daniel Roy, Lacan Cotidiano 275
 
O que é que se transmite, do pai e/ou da mãe, à criança? Esta questão encontra-se no centro dos posicionamentos atuais sobre a extensão da família « conjugal », e que já engloba diversos modos de «fazer família» - casamento, PACS, família dita « recomposta », casais homossexuais com filhos – e mesmo, possivelmente os casais homossexuais casados. A psicanálise, tão frequentemente desacreditada, é convocada neste ponto para carimbar a necessidade natural ou simbólica, e segundo, um modo de transmissão normatizado , para o bem-estar da criança : um papai + uma mamãe.
1- A transmissão: o que é irredutível?
A extensão atual de uma conjugalidade do tipo «familiar» sublinha a função «residual» da família no corpo social, indispensável a transmissão de uma constituição subjetiva.  O que é irredutível não é a transmissão da vida – pais ditos biológicos, o direito às origens, etc. – mas a relação com um desejo que não é anônimo.Isto não se opõe em nada com o fato de que os sujeitos tenham conhecimento das condições de sua vinda ao mundo, isto indica, apenas, que o vivo da questão da transmissão atravessa estas   diversas representações, necessariamente presentes.
2- As funções do pai e da mãe : à qual necessidade respondem?
Torna-se extenuante definir uma repartição de  « papéis » maternos e paternos : diversos corpos falantes fazem-se hoje os suportes dessas duas funções, fora de toda repartição «natural» (sexo) ou «cultural» (gênero). Portanto, o que são estas funções? A função paterna, indica apenas uma coisa: a necessidade da castração! É muito, já que trata-se de encarnar uma autoridade que não tem a não ser a garantia da palavra. A função materna, indica a necessidade de transmitir a marca de um interesse particularizado, ou seja, a presença de um desejo. Então, aqui estamos de volta ao ponto de partida (um papai + uma mamãe)? Não de todo: cada ser falante pode se fazer o suporte destas duas funções, isso esta aberto. A única certeza, é que o fará às suas próprias custas. Portanto, não é de forma alguma certo que esses nomeados «os pais » façam o trabalho: neste caso, a criança vai lidar com isso de forma diferente.
3- O que conta, é o que vem deles, isso não é porque sejam dois, de sexos diferentes. De qualquer modo, para cada um deles, a diferença dos sexos existe e os dividem, ou mesmo os afligem. O princípio permanece de não «combinar» demasiado os pais, quer eles sejam homo ou hétero: nos melhores dos casos, o que os une, ou os desune, é enigmático para a criança.
Mas o que uma criança pode, portanto, receber de um homem ou de uma mulher, enquanto que eles se reconhecem «pai» ou «mãe»? Para um pai, Lacan sublinhará que inevitavelmente, a criança cairá sobre o seu «pecado», sobre a sua falta: ele vai fazer bem, nomear com ardor, pois, nunca esgotará o gozo da língua...encarnado pela mãe, aquela que ensina a sua criança a representar !
Então, um pai sempre carente – irá transmitir a castração -, uma mãe que institui a mascarada – transmitindo o particular do seu desejo: extrai-se aqui da « conivência social » que continua a fixar a criança à mãe, fazendo-a «a sede eleita das interdições» (Ah, o incesto e o incestuoso que sempre ameaçam).
4- Há um mal-entendido !
O mal-entendido « que sua linhagem lhe transmitiu dando-lhe a vida », consiste no fato de que não há nada de natural, nem de sobrenatural, para fazer laço entre um pai, uma mãe e uma criança. Não tem nada de outro para ligar os membros da família – qualquer que seja a sua composição -, que este enigma evidenciado por Freud, que nenhum ser falante saberia « de onde vêm as crianças ». Assim, os seres falantes não estão em dívida, no que diz respeito, aos seus pais, porque eles lhe « deram a vida », mas porque eles lhes transmitiram esta falta, este defeito inerente a todo discurso, por não poder dar conta da aparição de corpo falante no real, que não seja, pelo mal-entendido da palavra.
Assim, de nenhuma forma, estas funções paternas e maternas, liberadas pela psicanálise, não podem fundar uma norma « familiar », e as diversas famílias, qualquer que seja suas constituições, podem ser, para o pequeno do homem que é ai acolhido, o lugar desta dupla transmissão :
1) que o habitat da linguagem com efeito é o lugar de uma separação - a castração -,
2) que há de inventar com a alíngua um saber-fazer com o gozo – com a mascarada -.
O fracasso é, portanto, aqui a única norma: os avatares da família moderna o ilustram com estrondo(s), conjugando separações e mascaradas nas configurações inéditas !

Parágrafo 1 e 2: Lacan J., « Nota sobre a criança », Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 369
Parágrafo 3: Lacan J., Seminário, Livro  XVII, O avesso da psicanálise, Rio de janeiro, Jorge Zahar, p. 89 e p. 129
Parágrafo  4 : Lacan J., « Le malentendu », Ornicar 22-23, printemps 1981, p. 12