sábado, 16 de fevereiro de 2013

O que é que se transmite, do pai e/ou da mãe, à criança?

* Por Daniel Roy, Lacan Cotidiano 275
 
O que é que se transmite, do pai e/ou da mãe, à criança? Esta questão encontra-se no centro dos posicionamentos atuais sobre a extensão da família « conjugal », e que já engloba diversos modos de «fazer família» - casamento, PACS, família dita « recomposta », casais homossexuais com filhos – e mesmo, possivelmente os casais homossexuais casados. A psicanálise, tão frequentemente desacreditada, é convocada neste ponto para carimbar a necessidade natural ou simbólica, e segundo, um modo de transmissão normatizado , para o bem-estar da criança : um papai + uma mamãe.
1- A transmissão: o que é irredutível?
A extensão atual de uma conjugalidade do tipo «familiar» sublinha a função «residual» da família no corpo social, indispensável a transmissão de uma constituição subjetiva.  O que é irredutível não é a transmissão da vida – pais ditos biológicos, o direito às origens, etc. – mas a relação com um desejo que não é anônimo.Isto não se opõe em nada com o fato de que os sujeitos tenham conhecimento das condições de sua vinda ao mundo, isto indica, apenas, que o vivo da questão da transmissão atravessa estas   diversas representações, necessariamente presentes.
2- As funções do pai e da mãe : à qual necessidade respondem?
Torna-se extenuante definir uma repartição de  « papéis » maternos e paternos : diversos corpos falantes fazem-se hoje os suportes dessas duas funções, fora de toda repartição «natural» (sexo) ou «cultural» (gênero). Portanto, o que são estas funções? A função paterna, indica apenas uma coisa: a necessidade da castração! É muito, já que trata-se de encarnar uma autoridade que não tem a não ser a garantia da palavra. A função materna, indica a necessidade de transmitir a marca de um interesse particularizado, ou seja, a presença de um desejo. Então, aqui estamos de volta ao ponto de partida (um papai + uma mamãe)? Não de todo: cada ser falante pode se fazer o suporte destas duas funções, isso esta aberto. A única certeza, é que o fará às suas próprias custas. Portanto, não é de forma alguma certo que esses nomeados «os pais » façam o trabalho: neste caso, a criança vai lidar com isso de forma diferente.
3- O que conta, é o que vem deles, isso não é porque sejam dois, de sexos diferentes. De qualquer modo, para cada um deles, a diferença dos sexos existe e os dividem, ou mesmo os afligem. O princípio permanece de não «combinar» demasiado os pais, quer eles sejam homo ou hétero: nos melhores dos casos, o que os une, ou os desune, é enigmático para a criança.
Mas o que uma criança pode, portanto, receber de um homem ou de uma mulher, enquanto que eles se reconhecem «pai» ou «mãe»? Para um pai, Lacan sublinhará que inevitavelmente, a criança cairá sobre o seu «pecado», sobre a sua falta: ele vai fazer bem, nomear com ardor, pois, nunca esgotará o gozo da língua...encarnado pela mãe, aquela que ensina a sua criança a representar !
Então, um pai sempre carente – irá transmitir a castração -, uma mãe que institui a mascarada – transmitindo o particular do seu desejo: extrai-se aqui da « conivência social » que continua a fixar a criança à mãe, fazendo-a «a sede eleita das interdições» (Ah, o incesto e o incestuoso que sempre ameaçam).
4- Há um mal-entendido !
O mal-entendido « que sua linhagem lhe transmitiu dando-lhe a vida », consiste no fato de que não há nada de natural, nem de sobrenatural, para fazer laço entre um pai, uma mãe e uma criança. Não tem nada de outro para ligar os membros da família – qualquer que seja a sua composição -, que este enigma evidenciado por Freud, que nenhum ser falante saberia « de onde vêm as crianças ». Assim, os seres falantes não estão em dívida, no que diz respeito, aos seus pais, porque eles lhe « deram a vida », mas porque eles lhes transmitiram esta falta, este defeito inerente a todo discurso, por não poder dar conta da aparição de corpo falante no real, que não seja, pelo mal-entendido da palavra.
Assim, de nenhuma forma, estas funções paternas e maternas, liberadas pela psicanálise, não podem fundar uma norma « familiar », e as diversas famílias, qualquer que seja suas constituições, podem ser, para o pequeno do homem que é ai acolhido, o lugar desta dupla transmissão :
1) que o habitat da linguagem com efeito é o lugar de uma separação - a castração -,
2) que há de inventar com a alíngua um saber-fazer com o gozo – com a mascarada -.
O fracasso é, portanto, aqui a única norma: os avatares da família moderna o ilustram com estrondo(s), conjugando separações e mascaradas nas configurações inéditas !

Parágrafo 1 e 2: Lacan J., « Nota sobre a criança », Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 369
Parágrafo 3: Lacan J., Seminário, Livro  XVII, O avesso da psicanálise, Rio de janeiro, Jorge Zahar, p. 89 e p. 129
Parágrafo  4 : Lacan J., « Le malentendu », Ornicar 22-23, printemps 1981, p. 12

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