sábado, 12 de novembro de 2011

Beleza Fabricada

* Texto retirado do livro Polêmicas Contemporâneas, capítulo Beleza Fabricada, coleção e SESC SP, Editora Lazuli, por Jorge Forbes.



Um dia, talvez quando os historiadores se debruçarem sobre os últimos vinte anos do século 20, notarão que uma das suas mais claras características foi o estabelecimento do "sem limite". Sem limite de distância, com a revolução da Internet; sem limite da cura, com novos medicamentos, clonagens, partos fabricados; sem limite da segurança, com carros blindados e guardas armados; sem limite da beleza, com plásticas estéticas e dermatologia cosmética. E esses historiadores constatarão um paradoxo: ao contrário do que o "bom senso" poderia esperar, não acompanhou esse formidável progresso uma taxa equivalente de felicidade e de bem-estar, ao contrário, o que se viu foi o crescimento dos quadros depressivos e das toxicofilias. Surpresa! O que aconteceu? Em um primeiro momento pensou-se que os novos métodos não traziam a almejada felicidade por estarem sendo sub-utilizados e, em conseqüência, tocou-se a multiplicá-los. Se um guarda é pouco, contratam-se dois, ou três, ao mesmo tempo que se transforma a casa em casamata, nada ficando esta a dever às celas de um presídio de segurança máxima. Conclusão: é a vítima em potencial, em seu afã de proteção, que acaba na cadeia, e, pior, por auto-aprisionamento.
Raciocínio semelhante pode ser empregado para os outros novos remédios tecnológicos. Tomemos a beleza. Descobriu-se que o botox tem propriedades paralisantes da pele que propiciam o desaparecimento das rugas, porta-vozes da velhice. O local onde é mais aplicado é na testa, fazendo-a ficar "lisinha" (sic), esse é o efeito pretendido. Ocorre que, ao ser aplicado no meio da testa, muda a expressão facial da pessoa, pois, as laterais estando livres, as sobrancelhas se arqueiam só nas pontas externas, reconstituindo, em anima-nobili (o nome acadêmico da espécie humana), os mesmos traços das terríveis bruxas das histórias em quadrinhos. Belas, sem dúvida, mas bruxas. Aí, para retirar o efeito bruxa, só aplicando um pouquinho mais de botox nas laterais. Pronto, agora não é mais bruxa, é só uma Barbie aparvalhada, com cara de vazio. Finalmente, é o prêmio de consolação, basta aguardar alguns meses para o botox ser reabsorvido, voltando tudo à velha forma; no caso do botox ainda dá para remediar.
Onde está o limite? Deslocadas pelas evoluções científicas de seu terreno chamado "natural", as pessoas sofrem hoje de uma verdadeira síndrome do "sem limite". Será que a única solução é o limite da dor, como quando uma pessoa se vê encarcerada em sua própria casa (ainda está na memória de todos a história do banqueiro que morreu queimado em seu banheiro superprotegido), ou de quando seu rosto perdeu a vida? Ou, ainda, seria uma solução marcar o próprio corpo na tentativa de fixar um limite? Da automutilação às tatuagens e aos piercings a fronteira é tênue.
O que esperamos é que a crítica esclarecida faça um trabalho de separação entre os formidáveis avanços científicos dessas últimas décadas e a ideologia a eles parasitária do tudo-pode, tudo-tem-jeito. Caberá a médicos e pacientes e, de uma forma mais ampla, a fornecedores e usuários, responsabilizar-se pelo estabelecimento de novos limites. Deverá se privilegiar aquilo que se quer e não o que se pode.
A época da globalização em que estamos entrando exige de cada um o exercício de seu próprio limite, que hoje em dia vem menos da "natureza" que da própria escolha responsável. É aquilo que eu quero que me restringe, e não o que o outro, o tempo, por exemplo, me impede de conseguir. Ah, mas não é nada fácil o exercício da expressão do querer. A pergunta: "Você quer o que você deseja?" é uma das mais difíceis de responder, tanto por mulheres quanto por homens. Mas isso já é assunto para um próximo artigo, porque também aqui há limite.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Preciso de você

* Artigo publicado na Revista Psiquê n°63, março de 2011, por Jorge Forbes.
A jornalista me pergunta impressionada a razão de novas pesquisas constatarem que, contrariamente ao que muitos esperavam, o povo da internet cada vez mais associa seus passeios na rede com a necessidade de estar junto. Esse fato relativiza as críticas morais que bradam ameaçadores avisos anunciando que o mundo estaria perdido, pois a www -  World Wide Web – seria uma teia perigosíssima que estaria aprisionando nossa pobre juventude, em um isolacionismo narcisista e emburrecedor.
Essa notícia chega ao mesmo tempo em que o Papa se precipita em condenar um aplicativo para smart-phones, através do qual o fiel antenado se confessaria on line, sem a necessidade de se ajoelhar na madeira dura de um confessionário escurecido por muitos pecados ali penitenciados. Ao menos dessa vez, ufa!, o Papa mostrou que “tá ligado”, pois a web não substitui a presença física.
Na mesma vertente, podemos falar da repetitiva pergunta se é possível fazer análise por skype, ou serviço semelhante, sem ter que se preocupar com o terrível trânsito das grandes cidades, bem como se garantir em ter seu analista à mão, ou melhor, na tela, entre um mergulho e outro, em uma ilha paradisíaca, do outro lado do mundo.
Não dá. Há um quê na presença física que é insubstituível. E se dizemos “um quê” é exatamente pelo fato de não podermos precisar o que é isso da presença física que não sabemos traduzir em nenhum idioma e por nenhum meio, razão pela qual não a podemos substituir, pois, como celebrou Michel Foucault: “a palavra é a morte da coisa”; se falamos de algo, substituímos o algo pela palavra e não precisamos mais dele.
Em um mundo que quebrou os paradigmas cartesianos de espaço e tempo, jogando-nos no furacão do ilimitado sem fronteiras, não há nada a estranhar na necessidade da presença física do outro, do corpo do outro, do seu enigma, do cheiro, cor, som, movimento, textura, olhar, que não sabemos traduzir em bytes. Esse enigma do outro é o remédio para a angústia tão atual, por nos termos visto transformar em habitantes de lugar nenhum.
Seis mil moças e moços geeks se acotovelaram por uma semana, em São Paulo, em uma festa chamada Campus Party. Seis mil!, em um pavilhão de exposições. É tão importante estarem juntos, que um nipo-brasileiro, morando ao lado do local da festa, trocou o conforto de seu quarto, por uma tendinha de campanha, verdadeiro elogio do desconforto.
A presença do outro nos remete ao mais essencial de nós mesmos. Se fôssemos honestos, parodiando Vinícius, jamais diríamos expressões do gênero: “no meu íntimo”. E isso porque o que nos escapa é exatamente o nosso íntimo. Diríamos, melhor, com Lacan: “no meu êxtimo”, sim, porque o meu íntimo me é tão estranho – quem já passou por uma análise sabe bem o que estou descrevendo – que melhor chamá-lo de êxtimo, clara alusão ao estranho e ao externo de si mesmo, que habita cada um.
Podemos nos livrar de muita coisa na vida, mas não da gente mesmo, em especial desse ponto íntimo desconhecido, promotor de nossas paixões, essa força estranha vivida na sensação do “mais forte que eu”. A presença física do amigo, do amado, do familiar, do próximo, nos reconecta com esse ponto fundamental, âncora de nossas existências, ponto transcendente de nossa imanência, se quisermos nos valer do discurso da Academia.
Nesse mundo de aparente tudo pode, e de em tudo estou, não por isso devemos nos assustar que ao lado do aumento dos acessos aos meios virtuais, vejamos crescer em paralelo os lugares de encontro físico, sejam eles campus parties, igrejas, consultórios, bares, cruzeiros. Os motivos são variados e o que neles se realiza, também, mas a necessidade é uma só: estar junto. Na era da pós-modernidade, onde o laço social das identificações é predominantemente horizontal, nos damos conta que o principal afeto, o mais fundamental afeto, é o da amizade. Cada pessoa precisa de alguém que o ajude a chamar o seu êxtimo, de meu íntimo.